terça-feira, 31 de agosto de 2010

clive


a ladeira que subia, descia. confuso, cogitou pedir informação. os outros não tinham olhos no rosto. ele tinha, ou pensava que tinha. estaria a subir ou a descer. para trás, a mesma coisa. o cima, embaixo. o baixo, em cima. em suas mãos ainda se contavam cinco dedos em cada. nos pés, idem. algo era familiar. não ousou olhar dentro das calças. na cabeça ainda havia cabelos. queria um espelho. olhou de novo para frente. ou subia ou descia. um passo após o outro. arriscou. seguiu mais um pouco. pensava se já seria tempo de olhar para trás. queria saber se havia subido ou descido. cinco dedos. cabelos na cabeça. seguiu mais ainda. cinco dedos. cabelo. para trás, ainda era cedo. parou de conferir os dedos e cabelo. seguiu. seguiu. tomou coragem. olhou para trás. cinco dedos. cabelo. olhou dentro das calças. aliviado, levantou a cabeça e olhou em volta. havia subido ou descido. até ali, quatro certezas. tinha pau, cabelo, vinte dedos e estava completamente perdido.

perguntador


-levanta daí, menino. anda, senão o homem vai te pegar.
-o homem mau, mãe?
-é, o homem mau.
-vamos logo que sua tia tá esperando no carro.
-mãe, aquele homem é mau?
-não, meu filho. 
-por que não?
-não sei. anda logo, menino.
-mas mãe, como a gente sabe se o homem é mau?
-você faz cada pergunta. o homem mau só aparece quando a gente faz coisa errada.
-eu fiz coisa errada, mãe?
-não, meu filho, não fez não, agora vamos.
-mãe... será que se eu fizer coisa errada, um dia o papai aparece?

sábado, 28 de agosto de 2010

ossonho


sonhos enigmam, imagens de não saber, familiaridades estranhas, mar vem de novo em direção à janela do apartamento alto, se esparrama contra um invisível que não o deixa entrar, estava aberta, logo está todo seco, o mar. ando pela rua, telefone toca, amigos num bar, vou pra lá, não vou mais, aborrecimento, a mulher, a mulher cobra, tento envenenar, se despreende e me persegue. sonho mais. sonho, mas esqueço. o dia ontem, o dia amanhã. terror e paz, tudo cabe, sonho mais. humilhado pelos mais dóceis, contrassenso, os ditadores nunca estão lá. corro de mim. ou narro, ou narrado, sempre lá. mar, cobras, mulheres, intensidades impossíveis. sonho, substantivo que é verbo, presente. desembrulho, pra poder usar. maldito, bendito, continua lá. sonho. falso enigma. verdade de sonho é se lembrar.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

reciclagem



espumas sintéticas sobre o horizonte, visões turvas do que resta sob os pés. braços dormentes, mãos frias, cabeça vazia. o dia se faz em tons de lilás, as noites continuam negras, o vento que sopra é quente e frio. o sons são altos, súbitos e estridentes. caminhar trôpego, saudações incertas aos passantes, um amanhã que pouco importa, as palavras dirigidas são vagas, tão vagas como os ruídos do redor. já não se vêem mãos extendidas em nenhuma direção. todos abraçam a si próprios, nada vai bem em lugar algum. há um cuidado todo especial com o lixo. já não se polui mais tanto quanto antes. o planeta parece estar a salvo. não se acha mais nenhum papel no chão. todos estão sempre atentos a procurar. cabeças baixas, olhares nervosos. talvez tenhamos nos tornado catadores, talvez não. talvez sejamos tristes. uma nação de gente triste, sozinha e ressentida, mas com um enorme compromisso moral de manter as ruas limpas. não há mais pombos podres a ciscar os restos. hoje, os pombos são outros.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

pra quem é do dia

eu acordo mais cedo e descubro que sou menos eu, penso em ainda mais cedo, menos ainda eu. se não eu, quem? quanto mais cedo mais outra coisa que não alguém. bem cedo, bem cedo mesmo, não existe ninguém. o fim do dia se encaminha, cansamos por ter carregado um dia inteiro de eu, de outrem, mas aí chega a noite e nos dá de novo a esperança de no dia seguinte acordar bem cedo. a insônia é a ansiedade pela chegada de um dia mais calmo do que o anterior. e no próximo dia estará sempre guardada, a esperança e a dor.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

a troca


cheguei pra você com as coisas mais belas que recolhi por onde passei. você sorriu por simpatia ou descaso, não sei. me disse que só aceitava moedas. eu tentei explicar. você não quis saber. então, eu peguei o que tinha, troquei por moedas e dei pra você.

ontem mesmo


ontem mesmo lembrávamos nossas brincadeiras de infância, as minhas custei pra lembrar, ontem mesmo me peguei tão diferente de quando a ordem era brincar. ontem mesmo me vi meu pai, ontem mesmo me vi minha mãe. ontem mesmo já não tinha mais medo de escuro, de bicho escondido no mato, de arrumação, de despedidas. ontem mesmo entendi tanta coisa, mas tanta coisa, que ontem mesmo sonhei uns sete sonhos, daqueles que por muito pouco não te fazem acordar. hoje acordei cansado, pensativo, preocupado. quisera eu poder esquecer isso tudo e sair pra brincar. inventar outros ontens, dignos de lembrar.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

três por dois


é como se fizesse muito tempo, digo isso mesmo sem bem saber se realmente faz. sinto o tempo de outro jeito. os anos já não fazem mais tanto efeito, as casas fazem mais, as ruas que percorro, paisagens agora rurais. ganhei mais belos pores do sol, novos amigos, novas saudades, outra paisagem. cavalo albino, escola estranha, praça do trenzinho. em volta tudo novo, antigas, as memórias. quero saber a serenidade do homem velho, que já passou por tanto mais. quero saber, se der, me diz, como é que faz.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

teimosismo



quando tudo se entorta e nós nesse tudo, quem seremos, saberemos desentortar, para que não seja tão grave, talvez, seguir futucando na memória, lembrar que não foi uma única vez, nem a última será, o estado das coisas é sempre assim, cataclísmico, sujo, empoeirado como cantos de casa de homem solteiro, como cuecas velhas, comida azeda. é com a risada e com os devaneios que se revestem aqueles que chegam mais longe, mais longe que os outros que simplesmente pararam de caminhar, porque sempre é assim, não há nada de óbvio ou causal, por simplesmente se saber que nunca se vai chegar, não! isso não implica em se parar. quem anda sabe que tipo de coisa se escuta no caminho. é normal, no início, tentar explicar, às vezes para si próprio, e a convicção que surgia da simples dúvida, esta muda logo, e quando amadurece pára de explicar, só não pára de tentar. é quando tudo se entorta e segue. do jeito que vai, do jeito que dá.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

quando o tempo limpa


no inverno
às vezes o tempo limpa
tanto tanto tanto
que esfria muito
muito muito muito
mais do que nunca
é tempo de estarmos juntos
mais do que nunca

idas e vindas


idas e vindas
infinitas
idas e vindas
mais idas do que vindas
como se fosse possível
não sendo
para onde então retornei 
nas vindas que não contei?